A decisão do Supremo Tribunal Federal de assentir sobre a constitucionalidade do sistema de cotas raciais  nas universidades é o desfecho de um longo debate em que muitas feridas nacionais afloraram.  O processo que envolveu a defesa de um tratamento diferenciado para os negros e as críticas a qualquer diferença feita aos estudantes por causa de sua cor, demonstrou como no Brasil ainda precisamos encarar os tabus e buscar o distanciamento emocional para um entendimento mais  íntegro da realidade.

 O racismo no Brasil tem um aspecto controverso. Nenhum negro apanha da polícia se estiver bem vestido, dirigindo um carro de luxo, morando num condomínio fechado. Com o trabalho da mídia, a cultura negra virou uma referência cult. Somos o país do samba, do futebol, somos o país em que a elite cultua referências africanas. Entre nossos heróis mais populares estão negros e o discurso racista, o proferir palavras contra negros, hoje é rechaçado socialmente, diferente  do que acontece em outros países, onde o racismo é mais nítido.

 A discriminação no Brasil é de ordem social. Negros, pardos e brancos são vítimas da pobreza. Os mal vestidos, desempregados, sem educação, trabalhadores braçais – são estes os que se tornam suspeitos para a polícia, são os que são abordados em blitz, são os que encontram as portas fechadas. É claro que entre as classes desfavorecidas, negros são maiorias mas a relação histórica que conduz a esse fato tem muito menos a ver com o preconceito de pele, do que com a rigidez social no Brasil. Para qualquer pessoa de origem pobre, escalar as classes econômicas, vencer na vida, prosperar é um desafio gigantesco que exige muito mais que esforço mas uma confluência de situações favoráveis. E temos que todos os negros saíram da escravidão, foram dispensados de fazendas onde tiveram a força de trabalho sugada e ganharam a rua apenas com seus trapos amarelados e surrados. Durante gerações, as famílias que começaram do nada  buscam encontrar seus espaços.

 Só que na história brasileira, houve famílias brancas que  viviam aquele mesmo momento histórico em condições muito parecidas a dos escravos. Quando a multidão negra deixou de ser escrava, já encontrou concorrência direta entre os brancos e caboclos miseráveis. Estava instalado o caos sócio-racial brasileiro. Brancos pobres e negros sem nada de posse nem de passado disputando a sobrevivência num cenário de escassez e de nenhuma política pública. Condição que se arrastou por décadas e décadas.
Nesse percurso histórico, muitas famílias negras venceram. Agraciadas por escolhas acertadas, pelo talento, pela oportunidades raras, muitos chegaram à prosperidade e à riqueza. Isso não foi regra nem para negros, nem para brancos desvalidos. Famílias que se uniram em casamento ou não, mas que juntas formaram a base da pirâmide da nação.

 É louvável o poder público buscar formas de abrir mais oportunidades a quem historicamente não as teve, mas a minha dúvida continua sendo: “Será que a cor da pele é realmente o melhor critério?” Eu descendo de uma família negra, dessas que se uniram a brancos e que produziram filhos que já não tem traços africanos.  Como eu, boa parte da nação é fruto da miscigenação, alguns prósperos, outros não. E aí? É justo que um negro que teve boas escolas, que viveu uma vida próspera, procure entrar em uma universidade por uma porta privativa enquanto quem só estudou em escola pública por ser pobre tenha uma vaga a menos para disputar?

 Inteligência e capacidade não se encontram nos pigmentos da pele, mas as limitações surgem quando não é dado às pessoas as mesmas condições de aprendizado e formação. Sou favorável a um sistema de compensação, mas penso que o sistema de cotas deveria ampliar sobremaneira a entrada na universidade para aqueles que estudaram em escolas públicas e que só pelo estudo tem a chance de mudar de vida.

 Cotas cujo critério é o passado do estudante da rede pública seriam um grande incentivo para mudanças urgentes como a melhoria da educação pública fundamental e do ensino médio e um passo acertado rumo a uma reforma educacional tão necessária. Cotas definidas pela só cor da pele podem ter o efeito contrário e culminar na  desqualificação das conquistas já consolidadas como também na criação de uma tensão racial entre os mais jovens.

 Espero sinceramente que novos modelos sejam colocados em debate e nos levem a um aperfeiçoamento do sistema. A justiça é uma meta a ser perseguida e o entendimento de que tratar diferente os desiguais, favorecendo os desfavorecidos não deixa de ser o primeiro passo nesta direção.

 César Augusto Machado de Sousa é Apóstolo, Escritor, Radialista. Escreve todas as terças-feiras para o DM. E-mail apostolo@fontedavida.com.br

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