O editor que encomendou as controversas caricaturas do profeta Maomé defende que os muçulmanos redefinam o que é blasfêmia. Dez anos após a publicação das 12 charges que revoltaram a comunidade islâmica, Flemming Rose, então chefe da editoria de cultura do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, afirma que repsensar o conceito seria “salvar a paz social em uma sociedade multireligiosa, multicultural e multiétnica”.

“Para muitos muçulmanos, não há problema em perpetrar a violência no caso de muçulmanos ou não crentes cometerem a blasfêmia definida pelo clero islâmico”, diz o jornalista, sob o olhar atento de policiais dinamarqueses em Copenhague.

Como um dos protagonistas do drama envolvendo as caricaturas, a vida de Rose mudou de forma irreversível por conta das ameaças de morte que ele recebeu – o mesmo problema de Kurt Westergaard, o artista que desenhou Maomé com uma bomba em seu turbante.

Tradição dinamarquesa

A casa de Westergaard na região central da Dinamarca é agora uma fortaleza. Há cinco anos, o somali Mohamed Geele, de 29 anos, tentou invadi-la para matar o jornalista, cumprindo uma fatwa – decreto emitido por autoridade religiosa muçulmana – que ainda está ativa. Geele foi condenado por tentativa de assassinato e terrorismo.

Apoiando-se numa bengala, Westergaard, agora com 80 anos e aposentado da sátira, fala de forma apaixonada sobre ser um dos homens mais odiados no mundo muçulmano.

“Eu acho que ainda tenho um sentimento de raiva. Eu trabalhava como um cartunista dinamarquês de acordo com as tradições dinamarquesas”, afirma. “Eu critiquei uma autoridade – neste caso, uma religião. Uma grande religião. Eu acho que faz parte do trabalho de um cartunista e homem da sátira criticar quem está no poder, seja uma religião ou partido político. Se você trabalha de acordo com as tradições dinamarquesas, você ofende pessoas.”

Rose encomendou as caricaturas depois que um autor de livro para crianças se queixou que artistas estavam com muito medo de desenhar imagens sobre o islã para a sua publicação.

Primeiramente, as imagens foram impressas no jornal Jyllands-Posten, em setembro de 2005, mas a indignação no mundo muçulmano demorou vários meses para crescer – e eclodiu após uma viagem de uma delegação dinamarquesa islâmica ao Oriente Médio.

O imã Ahmed Akkari, porta-voz da delegação, mais tarde reconheceu que o propósito da viagem era excitar os ânimos. E esse objetivo foi alcançado, já que houve manifestações em todo o mundo. Estima-se que 250 pessoas morreram em tumultos. Instituições dinamarquesas foram atacadas, inclusive a embaixada em Damasco foi incendiada, e produtos do país foram boicotados no exterior.

Desde que abraçou a liberdade de expressão, Akkari se viu forçado a esconder-se. Mas, diferentemente de Rose e Westergaard, ele não recebe nenhuma proteção do Estado e vive na Groelândia.

“Não aceitamos charges de Maomé”

Na Dinamarca, os líderes muçulmanos permanecem inflexíveis em suas posições quanto às caricaturas. “Não aceitamos charges do profeta Maomé. O conceito de conectar bombas com a religião do islã é uma forma muito imatura e não civilizada de iniciar o debate e discussões”, opina.

É improvável que algum jornal vá reimprimir as caricaturas no aniversário de dez anos da publicação, especialmente após o atentado contra a redação do semanário Charlie Hebdo em Paris, em janeiro, e o ataque em Copenhague de fevereiro deste ano.

“Basicamente nós temos uma situação em que nós temos um veto jihadista que está sendo respeitado, no entanto, a contragosto por jornalistas e editores, o que eu acho triste”, afirma o jurista Jakob Mchangama, um dos principais defensores da irrestrita liberdade de expressão na Dinamarca. “Mas, ao menos, alguns admitem que eles agem por medo do que por respeito ou tolerância – o que é, claro, uma desculpa esfarrapada.”

Ele acredita que os muçulmanos deveriam aceitar a sátira como um sinal de estarem sendo totalmente aceitos pela sociedade ocidental. Mas seu ponto de vista é rejeitado por Uzma Ahmed, uma dinamarquesa de ascendência paquistanesa e ativista em Norrebro, um distrito predominantemente muçulmano em Copenhague.

“Nós não precisamos conversar sobre o enorme conflito cultural aqui, porque tem a ver com direitos e igualdade. Mas isso não é contemplado agora, porque liberdade de expressão é para quem é privilegiado”, afirma Uzma. “Eu vejo que nós desistimos de nossa liberdade de expressão e solidariedade para os poucos que querem usar a liberdade de expressão para zombar e desprezar das minorias. Nós podemos usar a liberdade de expressão de forma construtiva para criar um novo ‘nós’.”

Uzma conversava com Karolina Dam em um comício de boas-vindas aos refugiados em Copenhague. Karolina diz ter razões para questionar o islã: seu filho Lukas, de 18 anos, que tinha dificuldades de aprendizagem, se radicalizou ao e juntou-se ao “Estado Islâmico” (EI).

Ele foi morto no início deste ano em Kobane, cidade localizada na fronteira entre Síria e Turquia. Mas ela não deixa de ser a favor da liberdade de expressão.

“Eu acho que o respeito ao outro ser humano deveria existir antes de tudo. Nós não brigamos por causa das pinturas de Jesus, Cristo, Buda ou qualquer outra coisa – porque isso não é um problema”, afirma Karolina. “Mas, para muçulmanos, isso é um problema. Por que então continuar forçando a barra? Por que continuar colocando os dedos nos olhos deles?”

A atual crise migratória

A atual corrente migratória para a Europa leva Flemming Rose a questionar se os recém-chegados têm que aceitar os valores e a cultura ocidental em troca do refúgio, ou se a Europa deveria flexibilizar as suas tradições para acomodar os recém-chegados.

“Para mim, como alguém que está preocupado com a liberdade, a questão é como vamos ser capazes de preservar as liberdades fundamentais como a liberdade de expressão e de religião – que também implicam no direito de dizer não à religião – em uma sociedade que está ficando cada vez mais diversificada”, afirma Rose.

Segundo ele, infelizmente, a maioria dos políticos europeus acredita que, a fim de manter a paz social, é preciso restringir a liberdade. “Eu acho que é o contrário. O natural é, se você aclama a diversidade em termos de cultura, etnia e religião, você também deveria aclamar a diversidade em relação ao discurso, porque pessoas se expressam nas mais diversas maneiras se elas são mais diferentes”, diz Rose.

Em sua casa na cidade de Aarhus, a segunda maior da Dinamarca, Westergaard reflete sobre os muitos refugiados que vão em direção à Europa. “Nós vamos dar a essas pessoas um apartamento. Nós vamos dar às suas crianças educação gratuita, da escola primária até a universidade. Eu espero que essas pessoas possam respeitar as tradições dinamarquesas e a democracia. E se eles fizerem isso, eles serão bem aceitos e integrados entre a população dinamarquesa”, afirma o caricaturista que desenhou Maomé.

Mas Westergaard é inflexível. “Eu não tenho nada a me desculpar. Então eu nunca vou dar uma desculpa. Eu acho que seria uma perda do autorrespeito profissional caso eu tivesse que pedir desculpa”, completa.

Fonte: DW World via UOL

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