No papel, o SUS é um avanço e tanto, modelo até para os países desenvolvidos. A ideia de que saúde é um direito de todos e um dever universal do Estado eleva o nossos Sistema Único de Saúde a um patamar humanitário virtuoso, pelo menos, no mundo das ideias.
Na prática, o que vemos é um sistema deficiente, precário, injusto para com os mais necessitados.
O caos da Saúde Pública parece insolúvel, irremediável. A cada dia, a demanda pelos serviços cresce e a resolutividade se perde em labirintos de burocracias e desculpas. O paciente segue desnorteado no jogo de empurra de responsabilidades das esferas da administração pública e milhares morrem sem opção de atendimento ou serviço.
É perverso propagar que todos tem direito a serviço gratuito e de qualidade quando na prática não se viabiliza esse serviço. Nas filas por atendimento, nas agendas pelas consultas e cirurgias estão histórias de sofrimento e dor que seguem esquecidas pelas autoridades e por quem tem o poder de mudar a situação.
Recordo-me de uma senhora idosa, que foi mostrada por um canal de TV de Goiânia, em uma fila em busca de atendimento em um dos CAIS da região metropolitana. A mulher estava em pé para não perder o lugar numa fila interminável, o direito ao atendimento prioritário por causa da idade lhe fora negado. Ela tremia, o corpo todo, e era esse o sintoma que a havia trazido ao posto de saúde, denunciando algum problema neurológico. A senhora relatou que trazia os exames que fizeram há três meses, a consulta para o diagnóstico só tinha conseguido marcar para aquela data, e corria o risco de voltar pra casa sem saber, porque depois de horas de espera a informação era que não havia médicos. A vida esvaindo-se com o tempo perdido graças a falta de estrutura e atenção ao paciente. A reportagem não mostrou, mas além do sofrimento, imagino a angústia daquela senhora, sem saber se o mal que a acomete progredirá, com o temor do pior, do futuro.
A saúde brasileira lança o cidadão à incerteza. Quantos relatos já não foram feitos de gestantes que se prepararam para receber seus filhos, mas que por falta de atendimento não puderam abraçar crianças vivas e sadias? Quantas cirurgias que seriam consideradas simples não terminaram em mutilações, invalidez ou morte? O sistema que se degrada com o descaso das autoridades é mortífero e cruel para quem dele precisa. Quem recorre à saúde pública já tem contra si a dúvida, o receio de não ser devidamente atendido. A vida vem sendo desvalorizada e desprestigiada em nossas unidades de saúde, como resultado da falta efetiva de atenção ao que acontece nos corredores, UTIS, enfermarias dos hospitais e nos postos da rede básica.
E o pior é que não há inocentes no processo. Os recursos para a Saúde são compostos por várias fontes e responsabilidade da União, dos Estados e dos Municípios de acordo com o que estabelece a Constituição para cada ente. O desrespeito ou a tentativa de driblar a obrigação deveria ser considerada crime, mas são práticas muito comuns que ajudam a explicar a penúria dos hospitais e da rede pública. Alguns administradores maquilam os números, incluindo na conta, por exemplo, gastos com a folha de servidores inativos. Oras, o pagamento dos aposentados não pode ser tido como investimento em saúde sob pena de vermos os repasses diminuírem e não aumentarem com o tempo.
Além de financiar, garantir que o acesso seja igualitário e sem intermediações, o poder público também não pode negligenciar sua responsabilidade de zelar pela qualidade dos prestadores e dos serviços. Infelizmente, com o tempo houve uma degradação substancial do que é oferecido. Se na saúde pública ainda existem grandes profissionais, médicos de referência, é preciso reconhecer que os salários pouco atrativos estão cada vez mais afugentando os talentos e significando a desumanização no atendimento. A grande e severa queixa dos usuários do SUS são médicos pouco atenciosos, consultas relâmpagos e desinteresse real no paciente. Isto é inconcebível e cabe ao Estado exigir que o servidor, seja de qual área for e com que formação tiver, preste o serviço para o qual foi contratado com excelência. O que se tem constatado é que há profissionais – não a totalidade claro- que não entendem a natureza do atendimento do SUS e acabam por representar um distanciamento entre o paciente e a cura, simplesmente por não atentar ao outro, por não reconhecer e valorizar suas necessidades. Tais práticas e comportamentos que destoam violentamente da profissão deveriam estar no alvo de todo homem público que promete qualidade de vida e de serviço público em planos de governo.
Cabe ao poder público, federal, estadual e municipal, prover e promover políticas de prevenção e educação para que a população, principalmente os jovens cultivem sua saúde. O problema das drogas é o reflexo maior de que esse trabalho não vem sendo desenvolvido a contento. A sociedade está sendo tomada pelo vício e as campanhas de combate ao uso de drogas, lícitas ou não, são pouco efetivas, quase incipientes. Os traficantes avançam, lançam suas redes e o Estado cruza os braços, alheio à catástrofe que invade os lares. Milhares de famílias se veem sem saída, sem portas e sem caminhos para seus filhos perdidos no vício. É papel do Estado, que não coibi o tráfico, oferecer soluções e esperança no tratamento dos dependentes químicos e infelizmente, essa tarefa não tem sido feita.
A impressão que se tem ao analisar o caos na saúde é de que há duas realidades paralelas: uma é a dos gabinetes das autoridades de saúde e dos governos, com números e planos retos; outra é a dos corredores onde pacientes morrem aos poucos em macas frias e sem atenção. É hora de confrontar essas realidades, reconhecer que o distanciamento entre elas significa a morte de cidadãos que mereciam uma chance, e tornar urgente a missão de reconstruir o que desmorona. Fechar os olhos para a realidade da saúde é recusar enxergar o massacre de irmãos que, como nós, tem o direito à esperança e à vida.
César Augusto Machado de Sousa é Apóstolo, Escritor, Radialista. Escreve todas as terças-feiras para o DM. E-mail apostolo@fontedavida.com.br